segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Perda da chance: uma forma de indenizar uma provável vantagem frustrada

- notícias do STJ

Perda da chance: uma forma de indenizar uma provável vantagem frustrada
 
Surgida na França e comum em países como Estados Unidos e Itália, a teoria da perda da chance (perte d’une chance), adotada em matéria de responsabilidade civil, vem despertando interesse no direito brasileiro – embora não seja aplicada com frequência nos tribunais do país.

A teoria enuncia que o autor do dano é responsabilizado quando priva alguém de obter uma vantagem ou impede a pessoa de evitar prejuízo. Nesse caso, há uma peculiaridade em relação às outras hipóteses de perdas e danos, pois não se trata de prejuízo direto à vítima, mas de uma probabilidade.

Não é rara a dificuldade de se distinguir o dano meramente hipotético da chance real de dano. Quanto a este ponto, a ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), avalia que “a adoção da teoria da perda da chance exige que o Poder Judiciário bem saiba diferenciar o ‘improvável’ do ‘quase certo’, bem como a ‘probabilidade de perda’ da ‘chance de lucro’, para atribuir a tais fatos as consequências adequadas”.

O juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo Sílvio de Salvo Venosa, autor de vários livros sobre direito civil, aponta que “há forte corrente doutrinária que coloca a perda da chance como um terceiro gênero de indenização, ao lado dos lucros cessantes e dos danos emergentes, pois o fenômeno não se amolda nem a um nem a outro segmento”.

Show do milhão

No STJ, um voto do ministro aposentado Fernando Gonçalves é constantemente citado como precedente. Trata-se da hipótese em que a autora teve frustrada a chance de ganhar o prêmio máximo de R$ 1 milhão no programa televisivo “Show do Milhão”, em virtude de uma pergunta mal formulada.

Na ação contra a BF Utilidades Domésticas Ltda., empresa do grupo econômico Silvio Santos, a autora pleiteava o pagamento por danos materiais do valor correspondente ao prêmio máximo do programa e danos morais pela frustração. A empresa foi condenada em primeira instância a pagar R$ 500 mil por dano material, mas recorreu, pedindo a redução da indenização para R$ 125 mil.

Para o ministro, não havia como se afirmar categoricamente que a mulher acertaria o questionamento final de R$ 1 milhão caso ele fosse formulado corretamente, pois “há uma série de outros fatores em jogo, como a dificuldade progressiva do programa e a enorme carga emocional da indagação final”, que poderia interferir no andamento dos fatos. Mesmo na esfera da probabilidade, não haveria como concluir que ela acertaria a pergunta.

Relator do recurso na Quarta Turma, o ministro Fernando Gonçalves reduziu a indenização por entender que o valor advinha de uma “probabilidade matemática” de acerto de uma questão de quatro itens e refletia as reais possibilidades de êxito da mulher.

De acordo com o civilista Miguel Maria de Serpa Lopes, a possibilidade de obter lucro ou evitar prejuízo deve ser muito fundada, pois a indenização se refere à própria chance, não ao lucro ou perda que dela era objeto.

Obrigação de meio

A teoria da perda da chance tem sido aplicada para caracterizar responsabilidade civil em casos de negligência de profissionais liberais, em que estes possuem obrigação de meio, não de resultado. Ou seja, devem conduzir um trabalho com toda a diligência, contudo não há a obrigação do resultado.

Nessa situação, enquadra-se um pedido de indenização contra um advogado. A autora alegou que o profissional não a defendeu adequadamente em outra ação porque ele perdeu o prazo para interpor o recurso. Ela considerou que a negligência foi decisiva para a perda de seu imóvel e requereu ressarcimento por danos morais e materiais sofridos.

Em primeira instância, o advogado foi condenado a pagar R$ 2 mil de indenização. Ambas as partes recorreram, mas o tribunal de origem manteve a sentença. No entendimento da ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso especial na Terceira Turma, mesmo que comprovada a culpa grosseira do advogado, “é difícil antever um vínculo claro entre esta negligência e a diminuição patrimonial do cliente, pois o sucesso no processo judicial depende de outros fatores não sujeitos ao seu controle.”

Apesar de discorrer sobre a aplicação da teoria no caso, a ministra não conheceu do recurso, pois ele se limitou a transcrever trechos e ementas de acórdãos, sem fazer o cotejo analítico entre o acórdão do qual se recorreu e seu paradigma.

Evitar o dano

Em outro recurso de responsabilidade civil de profissional liberal, o relator, ministro Massami Uyeda, não admitiu a aplicação da teoria da perda da chance ao caso, pois se tratava de “mera possibilidade, porquanto o dano potencial ou incerto, no âmbito da responsabilidade civil, em regra, não é indenizável”.

No caso, um homem ajuizou ação de indenização por dano moral contra um médico que operou sua esposa, pois acreditava que a negligência do profissional ao efetuar o procedimento cirúrgico teria provocado a morte da mulher.

A ação foi julgada improcedente em primeira instância, sob três fundamentos: o autor deveria comprovar, além do dano, o nexo causal e a culpa do médico; as provas produzidas nos autos não permitem atribuir ao médico a responsabilidade pelos danos sofridos pelo marido; não há de se falar em culpa quando surgem complicações dependentes da condição clínica da paciente.

Interposto recurso de apelação, o tribunal de origem deu-lhe provimento, por maioria, por entender que o médico foi imprudente ao não adotar as cautelas necessárias. O profissional de saúde foi condenado a pagar R$ 10 mil por ter havido a possibilidade de evitar o dano, apesar da inexistência de nexo causal direto e imediato.

No recurso especial, o médico sustentou que tanto a prova documental quanto a testemunhal produzida nos autos não respaldam suficientemente o pedido do marido e demonstram, pelo contrário, que o profissional adotou todas as providências pertinentes e necessárias ao caso.

De acordo com o ministro Uyeda, “para a caracterização da responsabilidade civil do médico por danos decorrentes de sua conduta profissional, imprescindível se apresenta a demonstração do nexo causal”. Ele deu parcial provimento ao recurso para julgar improcedente a ação de indenização por danos morais.

Escolaridade e acesso à justiça

Pobreza e baixa escolaridade impedem brasileiros de irem à Justiça



Por Arthur Rosa,
No Valor Econômico


O baixo nível de escolaridade e a situação de pobreza impedem boa parte da população brasileira de ter acesso ao Judiciário.


Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostra que esse fatores foram determinantes para que 63% das pessoas que tiveram algum tipo de direito lesado no ano passado não recorressem à Justiça.
Caso tivessem optado por esse caminho, o número de novos processos - que foi de 25,5 milhões em 2009 - seria 170,3% maior.
A pedido do CNJ, o técnico Alexandre dos Santos Cunha, do Ipea, cruzou dados do relatório Justiça em Números 2009 e indicadores socioeconômicos e revelou que 53,54% da demanda pode ser explicada pelos níveis de educação e social dos que recorrem ao Judiciário.
"Muitas pessoas não procuram a Justiça por desconhecimento ou por entenderem que é um caminho muito caro", diz o técnico.
Em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com melhores indicadores - 7,5 anos de estudo (ensino fundamental incompleto) e 19,55% de pobres -, o número de casos novos para cada 100 mil habitantes é 43% maior do que a média nacional.
Já o grupo com os piores indicadores, composto por Bahia, Ceará, Alagoas, Maranhão, Pará e Piauí, está 66% abaixo da média. Nessas regiões, o nível médio de escolaridade é de 5,33 anos e 59,18% das pessoas estão na linha da pobreza.
A partir desse cruzamento de informações, o técnico constatou que o acréscimo de um ano na escolaridade média da população poderia aumentar a demanda anual em 1.182 novos processos a cada 100 mil habitantes.
Já o impacto da redução de um ponto no percentual de pobreza resultaria em 115 novas ações.

sábado, 20 de novembro de 2010

discurso de Paraninfo pronunciado pelo Professor e Doutor Régenis Bading Prochmann - Formatura dos Doutorandos da Faculdade Evangélica de Medicina do Paraná - 6/12/1980

discurso de Paraninfo pronunciado pelo Professor e Doutor Régenis Bading Prochmann - Formatura dos Doutorandos da Faculdade Evangélica de Medicina do Paraná  - 6/12/1980

      A grande figura humana do eminente sacerdote, evolucionista, cientista e sábio Pierre Teilhard de Chardin foi por nós escolhida para o primeiro contato projetado. De sua obra Le Phénoméne Humain são as citações seguintes:
             "Établir autour de l'Homme, choisi pour centre, un entre cuhérent entre conséquents et antécédents; découvrir, entre éléments de l'Univers, non point un système de relations ontologiques et causales, mais une fui expérimentale  de récurrence exprimant leur apparition succéssive au cours du Temps: voilà, et voilà  Simplement, ce que j'ai essayé de faire."
      E mais adiante:  
            "Comme il arrive aux méridiens à l'approche du Pôle, Science, Philosofie et Religion convergent nécessairement au voisinage du Tout. Elles convergent, je dis bien; mais sans se confontlre, et sans cesser, jusqu'au bout, tl'attaquer le Réel sous angles et à des plans différents.
      Prosseguindo:
            "Deux options primordiales je tiens à faire remarquer s'ajoutent l'une à l'autre - pour supporter tous les développements. La première est le primat accordé au psychique et à la Pensée dons l'Étoffe de l'Univers. Et la seconde est la valeur 'biologique' attribuée au Fait Social autour de nous."
      E ainda   
            "Prééminente signification de l'Homrne dons la Nature et nature organique de l'Humanité: deux hypothèses que on peut essayer de refuser au départ; mais sans lesqueles je ne vois pos qu'on puisse donner une représentation cohérente et totale du Phénomène Humain."
            "L'Homrne, non point le centre statique du Monde - comme on l'a cru pour longtemps - maisl'axe et flèche de l'Évolution - ce qui est plus beau."
      O homem é fundamentalmente ser. A partir de seu ser ontológico, passa a existir. Neste processo de sua existência, relaciona-se como universo que o circunda. O sentido ontológico tem um conteúdo bipolarizante: tanto de cada ser  particular, de cada pessoa, como da espécie humana, numa relação de simultaneidade entre si, essencial, de ambos os aspectos aparentemente separados. Esta mediação em movimento se desenrola ao nível de sua consciência, entendida aqui no seu significado filosófico, e não freudiano. É, portanto, a característica fundamental da condição humana, a possibilitar-lhe suas relações coma cosmos e detonadora do processo histórico. É a partir dessa relação fundamental entre consciência e mundo que se desenvolvem, em processo evolutivo, as demais causalidades que, desde os primórdios até a etapa atual, vêm emergindo e interagindo entre si, em espiral crescente, no processamento da história atual, na interpretação da passada e no vislumbrar da futura.

      Até novos possíveis fatores, hoje em potencial, poderem também ter sua emergência. Efetivamente, trata-se de um movimento gigantesco.
        O homem, ser consciente, vê o universo. À medida que com ele se  relaciona, adquire em processo a sua análise. O cosmos é-lhe objetivo na dimensão em que tem sua existência estruturada em leis diversas, independentemente da consciência humana. Tal processo é o conhecimento. Evolutivo: em movimento permanente para sínteses mais altas. Dialético: nesta relação consciência-mundo, cuja expressão magna é a sua liberdade, daí resultando a gradativa incorporação da objetividade à subjetividade humana, isto é, ao seu interior. Histórico: limitado ao Espaço, Tempo. Obtida pelos órgãos dos sentidos e interpretada em seu sistema nervoso central superior. Superando o momento desta elaboração, retorna ao mundo objetivo sob a forma de ação, numa tensão constante entre a liberdade e o mundo. A consciência histórica é a síntese dialética de todos esses momentos entre si.
     Entretanto, há outro movimento das consciências entre si. Tendo o mundo como mediação, elas se comunicam, estabelecendo o relacionamento dos homens, cuja essência se processa ao nível das subjetividades, isto é, no interior das pessoas, inteirando-as ao nível de humanidade. O relacionamento médico-paciente é uma forma particular do mesmo. Completam-se, destarte, as bases do processo. Adendos seus desdobramentos existenciais.
      Em sua visão do passado, a consciência humana se possibilita uma reflexão acerca das origens, construindo e reconstruindo, incessante e laboriosamente, a existência passada, ao nível dos movimentos de comunicação entre consciências e entre consciência e mundo. Escreve, assim, a História. Em amplo exercício da sua liberdade, encontra o universo em movimento, isto é, a sua organização, entendida esta em seu sentido evolutivo: "do mais simples ao mais complexo".
      Ainda pela sua eminente expressividade, que é a sua liberdade, à consciência humana é dada a condição do encontro com este universo em movimento. Ela desvenda historicamente os seus meandros. Chega ao átomo, às leis fisico-quimicas da matéria. Desvenda a Pré-Vida. Conceitua suas ligações na estruturação de moléculas simples, e destas às mais complexas, até que, entendendo-se sua complexidade no "sentido de funções mais diversificadas", possibilitem a emergência das primeiras formas de Vida. Estas, inicialmente rudimentares, e permanentemente aglutinadas pela energia interior de seus componentes, ou "afinidades químicas", prosseguem nesse movimento, inimaginável mas perceptível, alcançando nesse processo formas mais complexas de vida. As ciências paleontológicas, geológicas e antropológicas explodem, a cada instante, em novos conhecimentos sobre os infindáveis processos específicos, das mais diferentes formas de vida que vão aflorando e acabam por demonstrar que, em sua forma mais complexificada de vida animal, há o momento em que o movimento da matéria nervosa, aglutinada por sua energia interna e interligada com outras formas teciduais da vida, faz emergir "o passo da reflexão" dentro dela. É a emergência da consciência no interior desta incomensurável organização material viva.
      A vida tomando-se consciente, eis o fato novo.
      Em sua visão do passado ainda, ampliando este processo, ocorre-lhe a reflexão sobre a causa inicial.
      Se todo o conhecimento é potencialmente alcançável, e a reflexão científica o vem demonstrando, ao nível do micro e do macrocosmos, parece lógico que a exigência última da racionalidade humana seja a de discutir a origem do Ser.
      Há os que negam esta posição, em face de que o conhecimento objetivo não teve à disposição, até hoje, um instrumental metodológico adequado para atingir esta causa inicial. Então, se ela não pode ser cientificamente demonstrada, não haveria sentido em sua perquirição. É a posição do Racionalismo e do Agnosticismo. Seus fundamentos estão em Emmanuel Kant (Critica da Razão Pura e Critica da Razão Prática).
      Por outro lado, há os que afirmam a validade desta posição. Na ausência de provas científicas, aceitam colocar a Razão Humana, sem a experimentação, para refletir logicamente sobre o tema ontológico.
      Emergem, assim, as concepções panteístas, interpretando a causa primeira dentro do mundo. É a eternidade do movimento. Karl Marx, Friederich Engels, Jean-Paul Sartre, Bertrand Russel e Jacques Monod podem ser citados como as mais vivas expressões, nos séculos XIX e XX, desse panteísmo, o qual, aceitando, mas também não provando, crê numa eternidade: na imanência absoluta do movimento.
      Surgem, também, os que reconhecem uma causa primeira transcendente. São os deístas. Para eles, o eterno transcende o universo, ultrapassando as dimensões do Espaço-Tempo. O movimento não é mais o fundamento exclusivo do Mundo. Esta visão pode convergir no Universo de Einstein.
      Todavia, nos deísmos há outras opções. De um lado estão os que concebem o primeiro principio como impessoal e energético, do qual sai, riam partículas, "as mônadas", as quais "desceriam" ao Universo para constitui-lo. Cada ser, cada homem. O objetivo final, segundo esta concepção, seria o retorno, o mais rápido possível, do ser á causa inicial. Nesse movimento constante de vai-e-vem não há criação, não aparece o novo. Há, sim, um fluxo permanente de saída e de chegada, a partir da causa primeira, trazendo como conseqüência a idéia do Universo-degradação. O Eterno Retorno é a base das filosofias reencarnacionistas. A Reencarnação, a lei do Kharma e o Deus impessoal são as marcas dos Hinduísmos dos Upanhishads, do Budismo, do Confucionismo. Também em Platão e Plotino elas se revelam. E se concretizam em Spinoza e nos fenomenólogos do século XIX Fichte, Husserl, Dilthey).
      E, doutro lado, chegamos aos que concebem o Eterno Transcendente como pessoa. Em decorrência, Deus é pessoal e o Mundo, um movimento em permanente criação e evolução. Cada ser que emerge é o novo, advindo do ser que o antecede. O movimento é, então, uma gênese. Esta visão permite conceber relações pessoais das consciências entre si, bem como com a Consciência Suprema Pessoal. Esta visão já aflora em Sócrates, desabrocha em Aristóteles, e se clareia no Judaísmo e no Cristianismo, estes os seus exemplos mais marcantes.
      Consciência de si, consciência para si, consciência do outro e para o outro, eis, em resumo, o processo fundamental do desenvolvimento da consciência histórica. Evidentemente, há muito mais a esclarecer quanto a aspectos específicos deste processo, em relação ao já formidável volume de conhecimentos estabelecidos. É o grande desafio do Universo á consciência. Mas ela já interpreta muitos fatos e os interliga numa sucessão cada vez mais coerente de idéias. Há já um esboço de sistematização: a Teoria da Evolução. A consciência humana analisando todo um passado, na tentativa de alcançar o primeiro momento do Tempo. É o seu potencial se transformando em ato. Ou a frutificação dos talentos.
      E, assim, ela vê o Presente. Interpreta cada vez melhor e mais os conhecimentos atuais. Reafirma as verdades, reconhece os erros. Outras vezes não os reconhece, e então simula. Isto se exterioriza, em seus vários aspectos, num movimento de contradições. O conhecimento do Presente aperfeiçoa o do Passado e prepara o do Futuro. Há um processo interligado. No passo da reflexão, que é conscientização e, portanto, hominização da Vida, daquela matéria altamente organizada e complexificada, a Consciência inicia a sua história. Isto é, emerge no processo evolutivo como o fato novo. Assim, passa a influir, como tal, nesse processo, conceituando-o. É a História humana se iniciando. Esta fase ainda permanece obscura para a consciência presente, em múltiplas nuances.
      Mas há que considerar um elemento transformador nisso tudo: o mundo se transformando em seu movimento, a consciência se transformando para melhor conhecê-lo, e ela transformando este mundo objetivo. O homem é, então, simultaneamente intérprete e ator na evolução. A ação transformadora se desenrola em um movimento evolutivo a partir das relações entre o homem e a natureza objetiva que o circunda. O homem a interpreta pelo conhecimento e a transforma pelo trabalho. Nascem as forças produtivas e as relações de produção, as quais assumem seus moldes específicos nas diferentes eras da História, até os tempos atuais.
      A natureza é transformada para se tornar adequada às necessidades humanas: natureza humanizada. São de dominação essas relações. O homem domina a natureza e a Consciência passa a dirigir também a Evolução. Isto é, como mais um fator fundamental na sua causalidade.
      É o poeta Geraldo Vandré quem diz:
            "Esperar não é saber.
            Quem sabe faz a hora,
            não espera acontecer."
      As consciências podem se relacionar também entre si. Para cada ser consciente, as outras consciências lhe são objetivas. Há, outrossim, uma subjetividade em cada uma. E, entre elas, a indispensável mediação do mundo objetivo. Emerge o processo de comunicação das consciências, o qual, na visão de pessoa, e expressando a liberdade humana, deve se fazer em termos de reconhecimento mútuo, isto é, de sujeito para sujeito.
      E, em se tratando do ser livre, já a contingência desse fenômeno assume uma relação de dominação. O homem domina o homem e a relação se torna sujeito-objeto, uma distorção de finalidade, a qual o tira de sua verdadeira condição humana e o situa noutra, estranha a si mesmo. É a alienação humana, criteriosamente descrita por Marx em Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Tal processo chega á nossa época com várias transformações, sem que o seu mecanismo básico tenha sido destruído. Eis o grande desafio para as gerações atuais.
      Na voz do teólogo Pedro Casaldàliga encontramos as palavras:
            "Deus está doente na carne do homem.
            E esta bata branca, com sangue de Pobre,
            Só se lava em vida, não se lava em morte."
      A característica essencial da objetivação humana reside, portanto, nas pressões sobre sua liberdade. Mas se iludem aqueles que, pressionando-a, pensam ter acabado com ela. A liberdade se retrai e, mais adiante, reage com força característica e impulsiona novamente o movimento para frente.Quanto mais pressionada, mais intensa é a reação de sua mola propulsora.
      Na poesia de Chico Buarque de Holanda, encontramos a voz desta liberdade:
            "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia."
      O afrontamento do grande desafio contra a alienação prossegue. Na dependência de que as consciências o aceitem e o encarem, nele se engajem e modifiquem o seu curso. Enquanto isso não ocorre, a omissão permanece. E a alienação também.
      Exclama o Pe. Jean Lacroix, em Marxisme, Existentialisme et Personnalisme:
            "Le bourgeois est contentement, donc inconscience. Il est aliene sans le savoir."
      Tarefa monumental aguarda, assim, as presentes e futuras gerações, pois as profundezas da alienação atingem os meandros da espécie humana. A ponto de Emmanuel Mounier declarar, em Le Personnalisme:
            "Le Marxisme a raison d'affirmer que Ia fim de la misère matérielle c'est la fin d'une aliénation et une étape nécessaire au développement de l'humanité. Mais elle n'est pas la fin de toute l'aliénation, même au niveau de la nature."
      Sem a participação conscientemente admitida, jamais chegaremos ao termo deste magno combate. E a consideração de que a consciência seja simplesmente um epifenômeno da Matéria e da Vida implica este risco.
      E ela vê o Futuro. Isto exige, basicamente, um posicionamento acerca do Fim da História, o qual é filosófico e, como tal, encerra um aspecto messiânico. Numa reflexão de criação de projetos que modifiquem o movimento objetivo do Mundo. E se tornando, também, este movimento, na medida em que o transforma.
      Posicionando-se em relação à História, há os que a aceitam e os que a negam. Estes, místicos e mitológicos, dela se afastando, vivem exclusivamente para seu objetivo, tentando as soluções dentro dessa perspectiva. Extrapolam sobre dados isolados da realidade do mundo. Fadados ao insucesso, por não se interligarem com o Real. Quanto aos místicos que se alienam da realidade objetiva, sua validade reside em desenvolverem uma experiência pessoal de auto-educação. Porém sem o devido engajamento.
      Entretanto, há os que se engajam na História, entendendo-a como uma sucessão de fatos isolados, sem ligação entre si. A História é, para eles, uma simples sucessão de acontecimentos.
      Todavia, há os que interpretam os mesmos fenômenos como interligados entre si, pressupondo uma causalidade comum. A objetividade do Mundo demonstra que não há efeito sem causa. Dentro dessa perspectiva, ainda há opções, que se vão desdobrando. Desde os que não admitem um sentido essencial para esses fatos históricos até os que o aceitam.
      A concepção existencialista do Mundo é o mais marcante evento concreto para quem concebe a liberdade como um acidente. A História não pode, então, ser tecida em torno de um sentido essencial. O Acaso é o seu primum movens. E o Nada a sua categoria absoluta.
      E há os que reconhecem um sentido essencial para toda a Existência do Ser, da qual a História humana é uma etapa decisiva mas não a Totalidade.
      O desdobramento interpretativo segue ainda seu movimento, diversificando-se entre a lmanência e a Transcendência. É o Materialismo Filosófico, que tudo concebe em função duma imanência absoluta. Reconhece a objetividade do mundo, o movimento evolutivo libertador e crescente do homem. A ele é conferida a eternidade. A natureza é intrinsecamente dialética, a matéria é o ser permanente e a consciência uma categoria acidental, isto é, um epifenômeno. A dimensão de pessoa não é sua essência, e o risco de a mesma se diluir no coletivo se evidencia.
      A liberdade humana também se condiciona, social e politicamente, na massificação e não no universo pessoal.
      E, por fim, há os que entendem a História como um processo em que o Mundo Real evolui fenomenologicamente, mas cujo movimento imanente busca uma transcendência espácio-temporal. A interligação se estabelece pela comunicação das consciências, de todo esse processo evolutivo, histórico-dialético. Há um sentido essencial para o mesmo. A Consciência é o seu fundamento, com os condicionamentos que a circundam e sobre ela tensionam. É o Universo Pessoal, seu grande objetivo histórico.
      E, assim, a Evolução se volta sobre si mesma, fazendo convergir no homem o Passado, o Presente e o Futuro.
      Na evolução da Vida, após o homem emerge o médico. Da visão do passado pode-se inferir que a doença antecedeu a Medicina. O homem, inicialmente sucumbido diante dela, passou a tentar dominá-la. Hospitais, medicamentos, procedimentos cirúrgicos, técnicas diagnósticas, enfermagem, formação e ensino médico, laboratórios, todos têm a sua história. Desde seu surgimento na sociedade humana até suas influências sobre fases mais atuais, convergindo para um objetivo: a pessoa humana.
      O relacionamento médico-paciente é uma forma de comunicação de consciências. Seu ponto de encontro é o sofrimento. Há explicações lógico-científicas para ele, em aspectos parciais. Porém, a totalidade da servidão humana possui uma conotação mística, no sentido em que a entende São João da Cruz. O sofrimento humano é, por conseguinte, o contato entre a humanidade e o médico.
      O médico, ao contatar com o doente, deve ter em mente a sua dimensão total. Não somente enxergar nele as facetas inúmeras da doença, mas, outrossim, todos os graus de alienação a que ele está submetido pela sociedade contemporânea. Pois, consciente ou inconscientemente, a abordagem médica implica sempre o seu envolvimento.
      Assim, a recusa e a aceitação do sofrimento se unem, nesta relação, de um modo antitético e ambivalente. A recusa se manifesta na busca, pelo homem, de soluções para problemas até então insolúveis. Nos dias de hoje, o exemplo mais típico é o das neoplasias. Desde os seus primórdios, o Homem vem se defrontando com a doença, seu padecimento. E é na sua recusa que surge a motivação para suplantá-lo. A recusa implica, portanto, a possibilitação da pesquisa do problema, até então insolúvel, bem como a elaboração trabalhosa de sua solução.
      E é Teilhard de Chardin quem define, em Ciência e Cristo:
            "A cruz não é apenas a símbolo da expiação, mas também o sinal do crescimento através da dor."
      A recusa e a aceitação do sofrimento são dois momentos de uma só realidade em transformação.
      A abordagem do ser padecente exige a possibilidade da profunda identificação entre o médico e o doente, como também a sua recusa. Nesta posição, embora superdotado de todos os conhecimentos possíveis até aquele determinado momento histórico, o médico jamais ultrapassará os limites da objetivação do enferma. Aborda-o de fora e não o penetra, nem o sensibiliza. Mas, pela ultrapassagem dessa barreira, poderá colocar-se nas profundezas de uma natureza humana. Então, "estranhas energias" se desprendem, com caráter libertador. E os ditos "milagres médicos" passam a acontecer, como decorrência do desapego do médico.
     O Pe. Teilhard ressalta:  
            "O desapego não consiste exatamente em desprezar e rejeitar, mas em atravessar e sublimar." (L'Énergie Humanine).
      O processo do relacionamento médico-paciente constituindo-se do interior para o interior de cada ser, concretizando-se numa união criadora, numa síntese de duas individualidades e possibilitando a emergência do novo. A solução do que vinha sendo, até então, insolúvel, brota, floresce e frutifica. A doença se torna curável. Belo retrato deste quadro encontra-se em Geraldo Vandré:
            "Certezas e esperanças prá trocar
            Por dores e tristezas que, bem sei, Um dia ainda vão findar."  

      A margem do sofrimento humano se reduziu. E a humanidade, menos padecente, estará mais feliz.
      Entretanto, ao lado da beleza, novos problemas, interrogações e posições vão surgindo para o médico. Ele não é absoluto. É também um ser histórico. O sofrimento inevitável lhe cai em face, incessantemente. Ele, covardemente, pode afastar o cálice.   
            Pai! Afasta de mim este calce com vinho tinto de sangue." (Chico Buarque).
      Ou, corajosamente, aceitá-lo. E prosseguir em sua espinhosa e sublime missão, afrontando os desafios. A morte inevitável e a doença incurável o levam à resignação, pois o conhecimento científico não é absoluto. Justamente por ser dialético e histórico, não pode proporcionar ao médico soluções definitivas. E a inevitabilidade dessa condição conduz o médico a uma ambigüidade: ao mesmo tempo que não pode solucionar tudo, não pode se afastar do problema. O movimento entre a cura e o sofrimento inevitável, ou o mal incurável, é permanente. De tese-antítese, buscando sínteses superiores e se desdobrando incessantemente em novas etapas, construindo simultaneamente, aos poucos, um sedimentado edifício de toda esta experiência humana, que, em resumo, é a Medicina.
      E a figura do médico, neste processo, pode ser resumida por Nothnagel, professor de Clínica Médica em Viena, no inicio do século:
            "O médico raramente cura, muitas vezes alivia, mas sempre consola.''
      O médico é a síntese da humanidade. Nele convergem as características da Ciência, os aspectos mitológicos do inconsciente coletivo, o sofrimento humano, as problemáticas políticas e sociais, a poesia, a dor e a beleza do mundo. Equivocam-se os que supõem que ele possa escapar disso e viver um mundo apenas seu. Está na raiz da Medicina a ligação essencial com o humano. E esse humano é tudo isso. E muito rituais, até o agora desconhecido para nós, como bem a propósito assinalava o professor Alexis Carrel, Prêmio Nobel de Medicina em1912, em O Homem, Este Desconhecido.
      A opção é bem clara. Ou a recusamos: então o paciente é visto tecnocraticamente. "Les hommes contre l'humain", proclamava Gabriel Marcel, em voz alta, criticando essa ótica. Ou a aceitamos: então assumi, mas o todo doente, cada doente, todos os doentes. E a compreensão das múltiplas dimensões dos pacientes, que fez Letamendi pronunciar:
            "Quem pensa que só Medicina sabe, nem Medicina sabe", se torna real.
      O homem é a unidade. Não um sistema, ou um aparelho. A proclamação de Louis Ramond, em Lições de Clínica Médica Prática, é, a propósito, bastante elucidativa:
            "Neste século de especialização sem misericórdia, tem-se facilmente a tendência de esquecer que as especialidades são criações do espírito humano.
            Necessárias, é verdade, pela amplitude dos conhecimentos médicos e pela delicadeza das técnicas, mas que a natureza não conhece. O corpo humano é um, e o olho, a orelha, as vias urinárias e as vias digestivas não têm nenhuma autonomia em face da doença.''
      Assumir isso é uma opção gigantesca. Desde reconhecer o outro como sujeito até a si mesmo como limitado. Sem a ilusão de chegar um dia ao conhecimento total, ilusão que Goethe retratou muito bem em O Fausto, o médico que vendeu sua alma a Mefistófeles em troca do saber absoluto. E que, com isso, saindo da condição humana, caiu na desesperança total e se destruiu.
      O caminho que podemos sugerir é diverso: o de buscar, incessantemente, o aprofundamento da condição humana. Então podemos dizer, com Blaise Pascal:
            "Não censurar, não louvar a criatura humana, mas, entre gerridos, buscá-la."
      Seu aperfeiçoamento, seu crescimento, assumindo-a radicalmente, até as últimas conseqüências, cujo limite não se pode divisar a priori, bem como até o extremo que a "energia humana" de cada ser o possibilite. Ora, se cada um de nós não pode tornar-se o absoluto, a via da comunicação entre consciências, em termos de reconhecimento, é a única possível que respeite as características de humanidade.
      O Perdão implica o envolvimento profundo da existência de um médico. Sua ocorrência verdadeira pressupõe fundamentalmente dois seres: o que perdoa e o que pede perdão. Houve, alhures, quem definisse o Amor como "jamais ter que pedir perdão". Sem dúvida, este é o estágio da perfeição. Porém, ao nível do imperfeito, há que pedir perdão. É, também, uma das muitas maneiras de amar. Pressupõe fundamentalmente uma espiritualidade muito profunda, uma autoconsciência determinada. O Ser que pede perdão revela uma atitude de desapego. O Ser que o concede, também. É uma profunda forma de diálogo humano, trabalhosa, difícil, penosa. O perdão é uma expressão da liberdade do ser, pois, em meio a um clima enorme de dificuldade e de dissociação que esteja ocorrendo em um relacionamento humano, ele, e somente ele, poderá efetivamente mudar o curso desse movimento, partindo de um estado de alienação para o de um encontro de consciências. Se não mais "ter que pedir perdão" é a paz do amor, ter que pedir perdão é a redenção no amor. Entre quem o pede e quem o concede existe uma união criadora, conduzindo dois seres à retomada humana no movimento evolutivo da vida.
            "Tanto amor para amar, de que a gente nem sabe." (Carlos Lira e Vinícius de Morais).
      O seu não reconhecimento radical conduz ás abomináveis formas de tortura. A sua aceitação como valor fundamental da existência humana implica reconhecer um Absoluto, Pessoal, com sua eterna competência em concedê-lo.
      A Morte é a suprema alienação para o homem, em sua existência histórica. É uma constante no Universo, como antítese permanente da Existência. O conceito de existência é mais amplo que o de vida. Esta é uma forma de existência que emergiu num determinado período da evolução do mundo, quando já existiam milhares de fenômenos materiais preparando-a.
      E cada um desses seres que antecederam a vida no tempo, que tiveram sua história e seu desaparecimento como tal, tiveram a sua morte. Mesmo que se tenham transformado, como ser individual, tiveram a sua morte. A Morte existe, portanto, como condição fundamental da permanência da espécie. Ela é a manifestação do Nada, como categoria filosófica, a partir do momento em que o Ser passa a existir. Ao nível da Vida, ela continua existindo, sob formas diversas, porém conservando a essência do desaparecimento do ser particular. Ao nível do humano, ela se torna mais complexa, conferindo com a maior complexificação do próprio Homo sapiens. Eis um quadro sumário da Morte, com a qual, mais cedo ou mais tarde, todos nos defrontaremos. E o médico encontra-o a cada momento de seu ser.
      Encarada pelo ângulo da suprema alienação, a questão é saber se a morte biológica do homem é o fim do ser individual, ou não. Na concepção materialista, é o fim de toda a dimensão humana da pessoa. O Amor está fadado, então, a ser vencido pela morte do ser. Ou o ser supera a morte e o Amor a vence - é a outra dimensão. Nesta há uma ultrapassagem para algo que a consciência histórica não alcança, mas que a lógica metafísica pode pressupor. As opções são filosóficas, em face de o conhecimento científico não ter ainda elucidado este problema.
      E ao médico, mais do que aos demais, não resta alternativa, a não ser a de uma opção filosófica, diante de um problema que para ele, principalmente, é uma rotina. Sentida sem uma definição, a Morte desencadeia o temor, pais esta é a reação do homem diante do que lhe é desconhecido. Reação que fabrica, então, em sua mente, mitologias diversas. Por outro lado, se a incerteza científica é iniludível, uma opção filosófica define melhor o posicionamento de cada um. Visão escolástica ou visão aberta: eis a opção de cada consciência.
      E, então, poderemos dizer com Morris West:
            "Não fiquei realmente com medo. Compreendo, agora, que a morte é um evento logo esquecido, logo terminado. Mas ser um homem é um grande evento..."
      É o convite claro para a aceitação conseqüente da condição humana, na qual a Vida prevalece.
      A liberdade humana, não só respeitada, mas em crescimento, desenvolvendo o pensamento. O diálogo, como conseqüência da necessidade da troca das informações científicas, em sentido amplo, tanto na pesquisa como no ensino e no trato com o paciente, disto resulta o verdadeiro espírito universitário, no qual não há lugar para o pedantismo intelectual dos que se iludem com sua própria auto-suficiência. William Osler dizia:
            "Uma grande Universidade tem dupla função: ensinar e pensar." Isto só se torna possível á medida que os componentes humanos universitários se capacitem e atuem numa profunda atitude de diálogo humano.
      A sistematização de uma sociedade humana em que estas posições se concretizem na atividade econômica, isto é, na produção de sua infra-estrutura; na política, processo de possibilitação da convivência humana e da realização de projetos; na social, onde os seres humanos se reconheçam, de consciência a consciência, pela mediação do mundo; na educação, onde o crescimento da consciência crítica diminua os condicionamentos do inconsciente mitológico na exteriorização do comportamento. E permita que não mais seja, então, preciso dizer o que se afirma hoje, parodiando Yung, em O Homem Moderno em Busca de uma Alma.'
            "Está se tornando cada vez mais óbvio que não é a fome, nem os micróbios, nem o câncer, mas o próprio homem, o maior perigo para a Humanidade, parque ele não dispõe de proteção adequada contra epidemias psíquicas, infinitamente mais devastadoras que as maiores catástrofes naturais."
      Então é preciso possibilitar:
          - a recusa radical das relações de dominação entre os homens, as quais deverão ser de sujeito para sujeito;
          - a passagem da poder discricionário para o poder democrático, este entendido como participação consciente da cidadania;
          - da dominação de uma nação sobre outra para a inter-relação entre as nações; contra os imperialismos;
          - da dominação do homem sobre a mulher, e vice-versa, para uma dialética do humano, de sujeito para sujeito;
          - da educação impositiva para uma educação de diálogo;
          - da pesquisa visando fortalecer o poder para a pesquisa que liberte o Homem;
          - a Universidade abstrata para a concreta, voltada para as realidades nacionais e regionais;
          - da cultura importada para a cultura do povo;
          - da sexualidade repressiva e libertina, ambas objetivantes, para a do reconhecimento humano;
          -  das mitologias para o conhecimento lógico-científico;
          - dos privilégios às soluções comunitárias;
          - das ortodoxias fechadas, que levam á morte, para a abertura da vida;
          o da recusa da visão conspirativa para uma História sem dominações;
          - a síntese dialética entre o racional e o emocional dentro de cada pessoa;
          - a produção econômica do alimento, do remédio, do vestuário e da habitação dirigida para o faminto, o doente, o despido e o despojado, os quais, na andança humana, estão juntos.
      Então, com Castro Alves podemos cantar:
            Da Escravidão...   
                  "Oh! Cristo!
                  Embalde morreste sobre um monte,
                  Pois teu sangue não lavou da minha fronte
                  A mancha original.
                  Ainda hoje o são, por fado adverso,
                  Meus filhos alimária do universo
                  E eu, pasto universal."
                  (Vozes d'África)
        Para a Liberdade:  
                  'Lançai um, protesto, oh! povo!
                  Protesto que o mundo novo
                  Manda aos tronos e nações."
                  (O século)
      Meus amigos, colegas e paraninfandos. Estes são os esboços dos caminhos que a visão do mundo e médica deste vosso professor vos pode delinear, neste monumental momento de vossas vidas.
      Calcados em alguma experiência humana existencial, obtida no contato com pacientes e médicos, bem como numa atitude de reflexão permanente, buscando sintetizar teoria e prática numa unidade, numa práxis. É, ainda, uma curta experiência, porém intensa e radicalmente vivenciada a cada momento da existência.
      Embora admitindo, ainda, grandes limitações para vos aconselhar muito, ousaria sugerir-vos o Pe. Antônio Vieira, o qual, no Sermão da Sexagésima, asseverava:
            "Pregador que pregais com armas alheias, não hajais medo que derribe gigante."
      O valor fundamental do Conhecimento, do Diálogo, da Liberdade, da Dignidade Humana, da Pessoa e do Amor, sintetizados na relação clínica entre o médico e o paciente, os quais, na verdade, são tudo isso.
      Eles são a Medicina!
      Pensai sempre por vossas próprias consciências. Não dependais das mentes alheias. Assumi vosso ser ontológico. Ouvi, no diálogo, desde o que considereis saber menos do que vós, até aquele que saiba mais, segundo a sugestão do grande físico Lecomte-Du-Nöuy, que, em O Futuro do Espírito, citava Pta-Hotep. Não aceiteis nada além do que vossa liberdade possa permitir, vossa ética aquiescer e vosso amor retribuir, sob pena de severa omissão perante vós próprias e de perda do valor maior que é a razão de existir de uma pessoa: o respeito perante si mesmo.
      Então, abra-se em leque a verdade que o filósofo francês Maurice Blondel proclamou como "a mais humana": a interação, dentro de cada um de vós, entre o Ser, o Pensamento e a Ação.
      É o que vos desejo, com toda a sabedoria de minhas razões, tanto das racionais como daquelas que a razão desconhece, ou seja, as do coração do meu ser.
      RÉGENIS BADING PROCHMANN