Trabalhador
doente e a responsabilidade social do empregador
A
prevenção em saúde ocupacional se alcança apenas com o trabalho concatenado da
rede de atendimento primário, do serviço de medicina do trabalho, dos médicos
peritos em processo administrativo do INSS e em processos judiciais
previdenciários e trabalhistas.
Diogo
Pupo Nogueira, ainda em 1984, já notava o prejuízo ao trabalhador quando a rede
primaria de atendimento à saúde não incorpora a saúde ocupacional, afirmando
“existir uma dicotomia bem evidente, pela qual os que praticam a saúde pública
em regra não se preocupam com os problemas da saúde ocupacional. Por outro
lado, os que esta praticam nem sempre o fazem dentro dos preceitos
estabelecidos pela saúde pública. Disso resulta uma separação totalmente
artificial entre saúde pública e saúde ocupacional, com evidente prejuízo para
a microcomunidade trabalhadora que, não obstante estar incluída dentro da
macrocomunidade, é muitas vezes completamente esquecida por aqueles que zelam
pela saúde pública desta última.”[1]
A falência do sistema de saúde se comprova
estatisticamente com o aumento dos pedidos de benefício por incapacidade. Afinal,
seria muito simplório justificar estes dados estatísticos apenas ante o
desemprego, quando o que ocorreu foi o desmonte do serviço de reabilitação
profissional do INSS.
Há
uma reclamação generalizada de que o serviço de perícia médica do INSS e da
Justiça Federal não cumpre com suas obrigações de bem investigar e fundamentar
a conclusão pericial, em especial quando indefere um pedido de benefício por
incapacidade ou quando recusa um pedido de prorrogação ou reconsideração.
É cada vez mais frequente a alta médica pelo perito do
INSS, confirmada por médico perito da Justiça Federal e ao mesmo tempo a
conclusão do médico que promove o tratamento de saúde e do médico do trabalho
da empresa de que o trabalhador não está em condições de desempenhar sua
atividade habitual.
Muitos
trabalhadores tem sido vítimas de perícias médica mal instruídas tanto em
processo administrativo como judicial. Mas ao menos os trabalhadores com
vínculo empregatício tem recebido algum alento na Justiça do Trabalho, que vem
condenando os empregadores ao pagamento dos salários, independentemente da
prestação de serviço.
Para
os empregadores, isto em verdade constitui cortesia com chapéu alheio. Afinal,
acabam por pagar os salários de quem recebeu alta médica irregular do médico
perito do INSS.
Em uma relação de emprego o Instituto Nacional do Seguro
Social - INSS recebe contribuição previdenciária do empregado (desconto de 20% sobre
a remuneração – art. 21 da Lei 8212/91) e do empregador (contribuição
previdenciária de 20% incidente sobre a folha de pagamento – art. 22 da Lei
89212/91). Mas estes recolhimentos não asseguram automaticamente o respeito aos
direitos, notadamente em casos de incapacidade para o trabalho habitual e no
cenário nacional de sucateamento dos serviços públicos de saúde e educação.
Evidenciado
que o seguro social do trabalhador é financiado também pelo empregador, caso o
INSS não reconheça a incapacidade laborativa, deve a empresa recorrer da
decisão da autarquia, e ajudando o empregado hipossuficiente a melhor fundamentar
seu recurso administrativo, como vem decidindo a Justiça do Trabalho:
“Portanto, não há dúvida de que a recorrente foi sim impedida de
retornar ao trabalho após a alta do INSS, por ter sido considerada inapta pelo
setor médico da empregadora para reassumir as mesmas atividades desempenhadas
antes do afastamento. Ocorre que diante da divergência entre a conclusão da
perícia do INSS e o médico da empresa, cabia a esta diligenciar junto à
autarquia para a solução do impasse, não podendo simplesmente recusar o retorno
da empregada, que, de resto, nada recebeu de salário ou de benefício
previdenciário, vendo-se privada do principal meio de sobrevivência,
circunstância que inegavelmente viola as garantias concernentes à dignidade da
pessoa humana e do valor social do trabalho, inscritas nos incisos III e IV do
art. 1º da CR. Por outro lado, não se pode olvidar que a concessão de
auxílio-doença implica a suspensão do contrato de trabalho a partir do 16º dia
do afastamento, retomando o seu curso normal a partir da concessão de alta
médica pelo órgão previdenciário, daí a responsabilidade do empregador pelo
adimplemento dos direitos pecuniários enquanto o empregado não estiver
percebendo benefício da autarquia.”
(00699-2010-108-03-00-0-RO)
O
TST também já decidiu que o empregador deve receber o empregado após a alta
médica do INSS, certo de que se apresentar alguma sequela deve desempenhar
atividade compatível:
MS.
Antecipação dos efeitos da tutela. Art. 273 do CPC. Possibilidade. Cessação de
benefício previdenciário. Retorno ao trabalho obstado pelo empregador.
Restabelecimento dos salários. Manutenção do plano de saúde. Valor social
do trabalho. Princípio da dignidade da pessoa humana.
Constatada a aptidão para o
trabalho, ante a cessação de benefício previdenciário em virtude de recuperação
da capacidade laboral atestada por perícia médica do INSS, compete ao
empregador, enquanto responsável pelo risco da atividade empresarial, receber o
trabalhador, ofertando-lhe as funções antes executadas ou outras compatíveis
com as limitações adquiridas. Com esses fundamentos, a SBDI-II, concluindo que a decisão que
antecipou os efeitos da tutela para obrigar a reclamada a restabelecer o
pagamento dos salários, bem como manter o plano de saúde do empregado, está, de
fato, amparada nos pressupostos que autorizam o deferimento das medidas liminares
inaudita altera pars, consoante o art. 273 do CPC, conheceu do recurso
ordinário em mandado de segurança e, no mérito, negou-lhe provimento. No caso,
ressaltou-se que a concessão da tutela antecipada é medida que se impõe como
forma de garantir o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana,
pois o empregado, já sem a percepção do auxílio-doença, ficaria também sem os
salários, ante a tentativa da empresa de, mediante a emissão do Atestado de
Saúde Ocupacional (ASO) declarando-o inapto para as atividades que
desempenhava, obstar o seu retorno ao serviço. TST-RO-33-65.2011.5.15.0000,
SBDI-II, rel. Min. Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 3.4.2012.
De decisão de magistrado do
trabalho, destaca-se:
“(...) mesmo tendo o Órgão Previdenciário
afirmado por três vezes que o autor se encontrava apto ao labor e o laudo da
Justiça Federal também comprovar a aptidão, a empresa não aceitou seu retorno
ao trabalho, sob a alegação de que ele se encontrava inapto (fl. 17). (...)
Vale ressaltar, ainda, que quem não
concordou com a conclusão do INSS, que de alguma forma lhe impunha aceitar o
reclamante de volta ao trabalho, foi a empresa e não o empregado. Sendo assim,
cabia a ela recorrer da decisão junto ao INSS, o que não fez,
preferindo o caminho mais cômodo, ou seja, deixar que o reclamante, sem
qualquer apoio, recorresse às vias administrativa e judicial à procura de
solução para o seu caso. (...) Por um lado, se a empresa não está obrigada a
aceitar empregado doente em seus quadros, por outro não é correto e jurídico
que o empregado, considerado apto e que já não mais recebe o benefício
previdenciário, não aufira os salários correspondentes, principalmente quando
se apresenta reiteradamente ao labor, sem sucesso. Nesta ordem de idéias, não
se pode imputar ao reclamante os prejuízos decorrentes de ato da empregadora,
ainda que a título de protegê-lo, cabendo a ela a responsabilidade pelas
consequências de seus atos, principalmente no caso em apreço, em que o
empregado se apresenta ao trabalho por diversas vezes, acatando o resultado da
perícia previdenciária.” (00595-2009-090-03-00-9)
Caso
o médico do trabalho da empresa entenda que não é possível o retorno ao
trabalho, deve a empresa recorrer da decisão administrativa e do laudo pericial
do INSS que considera o trabalhador apto para retorno às atividades habituais.
Afinal,
é o médico do trabalho da empresa quem melhor pode:
1) avaliar o paciente/trabalhador e os
documentos emitidos pelos colegas médicos que promovem o tratamento de saúde; e
2) Relacionar as incapacidade e limitações
decorrentes da doença e de reações adversas a medicamentos e os gestos laborais
exigidos na atividade habitual.
Da mesma forma que os julgados acima,
outras decisões vem emergindo no mesmo sentido de proteger o empregado ante a
omissão daqueles que deveriam zelar pela salubridade no meio ambiente de
trabalho (RO
00399-2008-068-03-00-2, RO 01096-2009-114-03-00-4, 00595-2009-090-03-00-9, RO
001064-87.2010.5.03.0098, ED 0000475-44.2011.5.03.0136, 00699-2010-108-03-00-0-RO).
A omissão do médico do trabalho da empresa pode
representar prejuízo ao empregador, que responde pala ação ou omissão dos
prepostos que contratar (inciso III do art. 932 do Código Civil). É muito
importante o papel do médico do trabalho, pelo que a empresa não pode se
preocupar apenas com o aspecto formal, há que se preocupar sobre a competência
do profissional que contratar.
Ainda que a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da
Receita Federal do Brasil - ANFIP venha qualificando de mentira o marketing de
setores do governo de que a previdência social é deficitária[2], não é difícil concluir que
a perícia médica do INSS considera não apenas a saúde do paciente periciado,
mas em especial a saúde financeira do Instituto Nacional do Seguro Social.
Existe regulamento do INSS que exorta o médico perito a
promover verificação do local de trabalho, que permite à autarquia solicitar o
trabalho dos fiscais das Delegacias Regionais do Trabalho, seja em processo
administrativo ou judicial previdenciário, ninguém se preocupa com a qualidade
do laudo médico pericial quando o médico perito negligencia o conhecimento do
meio ambiente do trabalho. Diferentemente, na Justiça do Trabalho a inspeção do
local de trabalho é a regra em processos de insalubridade e periculosidade...
Interessante
seria ver os dados estatísticos da Previdência Social Brasileira sobre a
quantidade de inspeções em local de trabalho que vem sendo promovida pelos
médicos peritos ao longo dos anos. Afinal este pode dever de fiscalizar está lá
no § 2º do art. 338 do Decreto 3.048/99:
“Parágrafo 2º - Os médicos
peritos da previdência social terão acesso aos ambientes de trabalho e a outros
locais onde se encontrem os documentos referentes ao controle médico de saúde
ocupacional, e aqueles que digam respeito ao programa de prevenção de riscos
ocupacionais, para verificar a eficácia das medidas adotadas pela empresa para
a prevenção e controle das doenças ocupacionais.”
Não
basta ao médico perito dizer que é desnecessária uma vistoria no ambiente de
trabalho, ele deve fundamentar a decisão. Afinal, decisão deste jaez pode
sujeitar o médico a representação perante o Conselho Regional de Medicina,
notadamente porque de acordo com o art. 10 da Resolução nº 1488/98, são
atribuições e deveres, vistoriar o local de trabalho, fazendo-se acompanhar
pelo trabalhador que esta sendo objeto da perícia, para melhor conhecimento de
seu ambiente de trabalho e função.
De
acordo com o Manual de Perícia Médica da Previdência Social, Capítulo II, item
12.1, destacamos entre as atribuições do médico perito: avaliar o potencial
laborativo do segurado; realizar análise de postos de trabalho; participar de
equipes volantes... Portanto a omissão dos médicos peritos em elaborar laudos
sem nunca justificar o motivo de não terem promovido adequada investigação do
meio ambiente de trabalho encontra óbice tanto nas regras do Conselho Federal
de Medicina, como nas normas do Instituto Nacional do Seguro Social.
É
de indagar como pode o médico promover o “estudo do local de trabalho”, “o
estudo da organização do trabalho” sem fazer a inspeção do local de trabalho? A
omissão voluntária do profissional responsável pela Saúde Ocupacional, que
emite parecer conclusivo sem conhecer o ambiente de trabalho viola o art. 2º da
Resolução CFM nº 1.488/1998.
A qualidade do serviço
de medicina do trabalho da empresa, entre outros aspectos, se percebe pelo
maior conhecimento do meio ambiente de trabalho, das rotinas, gestos e riscos
laborais. E neste sentido a OIT, na Recomendação 112, reclama visitação
periódica aos locais de trabalho.
E o verdadeiro conhecimento destas
condições se faz por inspeção periódica do local de trabalho dos pacientes que
atende em exames admissional, periódico e demissional...
Não
basta ao médico do trabalho apenas concordar com a informação do médico que
trata a saúde do trabalhador de que o retorno ao trabalho não é recomendável.
Deve o médico do trabalho deixar bem claro que conhece o ambiente de trabalho e
as especificidades da atividade profissional habitual de seu paciente e por
isso não pode permitir o retorno ao trabalho.
A deficiência na formação técnica do médico do trabalho
tem causado prejuízo a grande número de trabalhadores, que continuam expostos a
graves riscos. Médicos do trabalho, negligenciando dever de ofício, deixam de
investigar e diagnosticar os problemas existentes. Tanto assim que vem
crescendo assustadoramente o número de processos nos Conselhos Regionais de
Medicina, na Justiça Cível e Criminal contra médicos do trabalho que, por
ignorância ou displicência, permitiram que trabalhadores fossem seriamente
prejudicados, como já alertava Diogo Pupo Nogueira em 1994.[3]
O serviço de medicina do trabalho pode cumprir uma
relevante atividade, de auxiliar o serviço social da empresa a verificar a
qualidade do serviço público no tratamento de saúde do trabalhador.
Medidas
desta natureza permitem à empresa responsabilizar o Estado pelo prejuízo que
causar por ineficiência do serviço público de saúde, notadamente em casos de
acidente de trabalho com sequelas ao trabalhador e também ajudando o empregado
a se defender da precipitada aleta médica da perícia do INSS, evitando que um
empregado que não se encontra suficientemente recuperado para desempenho de sua
atividade profissional seja obrigado a trabalhar “no sacrifício”. Isto é função
social da propriedade. Além de recolher as contribuições previdenciárias,
fiscaliza e exige a boa destinação dos recursos públicos.
[1]
NOGUEIRA, Diogo Pupo, INCORPORAÇÃO DA
SAÚDE OCUPACIONAL À REDE PRIMÁRIA DE SAÚDE, Revista de Saúde Pública, São
Paulo, 18:495-509, 1984, disponível em http://www.scielo.br/pdf/rsp/v18n6/09.pdf
, acesso em 15/02/2013
[2] CARVALHO,
Clemilce Sanfimm. Números Mentirosos, disponível em http://www.anfip.org.br/informacoes/artigos/Artigo-Numeros-mentirosos-Clemilce-Sanfim-de-Carvalho_24-08-2012,
acesso em 18/02/2013
[3]
VIEIRA, Sebastião Ivone (organizador), Medicina Básica do Trabalho, volume I,
Curitiba, Genesis, 1994, p. 58, NOGUEIRA, Diogo Pupo, Funções do Médico do
Trabalho.